Pedro Carvalho Oliveira
Professor Adjunto do Colegiado de História da Universidade Federal do Vale do São Francisco
O célebre historiador inglês Peter Burke cunhou uma das frases mais utilizadas para definir a função social da história: “lembrar à sociedade aquilo que ela quer esquecer”. A longa ausência de lugares de memória que lembram publicamente o trauma causado por 21 anos de ditadura militar no Brasil é sintomática: sob os efeitos da Lei da Anistia de 1979, colocar uma pedra sobre os crimes cometidos por agentes do Estado durante os “anos de chumbo” pareceu a forma mais apropriada de evitar conflitos e rumar em direção à democracia. Contudo, devemos lembrar as tantas ruas, praças e escolas batizadas em comemoração aos artífices da repressão. Esquecemos, mais uma vez, as vítimas; os algozes, porém, foram celebrados. Não à toa, sobrevive no Brasil uma visível simpatia por um passado atroz. Precisamos relembrar o que foi esquecido e, por isso, recai sobre a história a desconfiança de muitas pessoas.
Lembrar quem foi esquecido é um dos propósitos do filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles e que tem sido aclamado pela crítica nacional e internacional. Ele conta a história do desaparecimento do ex-deputado petebista Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello), preso por agentes do exército em 1971 sob suspeita de subversão. Vemos, a partir desse momento, o cotidiano de sua família se esfacelar conforme o tempo passa e as dúvidas sobre sua morte se convertem em certeza. Acompanhamos a sua esposa, Eunice (interpretada por Fernanda Torres), na busca por respostas enquanto tenta combater o medo e a violência perpetrada pelos militares contra ela e seus filhos.
A maestria com a qual a história é contada nos causa um sentimento constante: ao vermos Eunice, ao longo de quase todo o filme, tentar conter suas emoções para proteger os filhos, nos flagramos impotentes na tentativa de evitar a persistência de um nó na garganta. Somado às cenas de tortura física e psicológica exibidas, isto faz com que o medo e a revolta transbordem e atravessem a tela, nos tocando o peito. Ao contrário do que normalmente vemos em filmes sobre o tema, onde a luta armada e os movimentos de esquerda têm destaque, o filme de Salles tange o cotidiano de uma família que poderia ser a nossa. Como disse Fernando Gabeira, em reflexão publicada n’O Globo, o filme faz com que os horrores da ditadura sejam destacados como algo abrangente, capaz de entrar nas casas e destruir vidas. É um problema que está muito perto de nós. O filme tira a pedra de cima do passado e nos leva a ele, por meio de artifícios técnicos que nos arremessam aos anos 1970.
O filme é uma importante contribuição para pensarmos o Brasil de hoje, 53 anos depois. Apesar de tudo que a história nos ensinou, por que ainda existe no país uma memória afetiva em relação aos anos da ditadura? Além disso, ao abordar uma história real – adaptada do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do casal protagonista – vivida por personagens reais, “Ainda Estou Aqui” nos sensibiliza a pensar o que faríamos no lugar daquelas pessoas, pois não estamos tão distantes daquela experiência. O fim da ditadura foi ontem.
Dez anos depois do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, vivemos um clima político tenso e ainda imprevisível – em parte, resultante da insatisfação dos que se viram ameaçados pela comprovação de terem colaborado com a ditadura. A nossa democracia titubeia diante das disputas sobre uma memória da ditadura que precisa ser tratada com seriedade. Ela é uma ferida aberta, ardente, que causa dor e reações diversas nas pessoas que com ela convivem. O filme de Salles toca nessa ferida e nos faz pensar em como saná-la. Como é cantado por Erasmo Carlos na música que atravessa o filme quase como um conselho, “é preciso dar um jeito, meu amigo”. Do contrário, o passado continuará aqui.
Originalmente publicado em: https://infonet.com.br/blogs/getempo/o-passado-ainda-esta-aqui/em 23/11/2024
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