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Homenagem ao Véio

Adriano Antunes
Professor do Departamento de Farmácia da UFS

Artesão sendo homenageado pela UFS — Foto: Rafael Carvalho/TV Sergipe. Disponível em: https://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2024/03/05/artista-plastico-veio-recebe-titulo-de-doutor-honoris-causa-da-ufs.ghtml

Como começar uma homenagem ao Véio? Para mim, talvez seja a representação do próprio lamento sertanejo de Gilberto Gil: “ele é de lá, lá do Sertão, lá do cerrado, é do interior do mato, da caatinga do roçado, ele quase não sai, homem de poucos amigos, é como uma rês desgarrada”. O nome de batismo foi uma homenagem dos seus pais ao padroeiro das florestas, o cearense Padre Cícero. Quando criança, passava as tardes ouvindo histórias do folclore contadas pelos mais velhos, as narrativas dos assombrados, da Caipora, do Lobisomem, coisas essas que o encantavam, a contragosto de seus pais. Foi a fascinação pela sabedoria e pelos seus relatos que rendeu ao artista, aos cinco anos, o apelido de Véio. Dessa forma, aos 7 anos ele já era velho.

Nascido no município de Nossa Senhora da Glória, em 12 de maio de 1947, essa herança dos tempos de criança fez Cícero colher informações que alicerçaram seu temperamento e sua obra. Dos seis irmãos, foi o único que enveredou pelos caminhos da arte. Seu pai, agricultor, criava abelhas, e Véio, encarregado de ajudá-lo, se distraía fazendo bonecos com a cera delas. Seus pais não aceitavam que brincasse de boneca, que era como eles viam a arte de Cícero, na época. Por isso, escondia as obras em um baú. Nas mãos ainda jovens do artista, a massa de modelar sertaneja tomava forma de gente e animais. Já na transição entre a infância e a adolescência, quando começou a descobrir a madeira, o que mais o Véio ouviu foi “– Rapaz arruma um emprego, isso é coisa de preguiçoso”. E ele retrucava: “– Vocês nunca vão pagar uma dívida minha”. E, como diz o Véio, isso ele carregou “no capricho”, suando muito para ter tudo o que conquistou. As obras desse tempo foram jogadas no mato ou queimadas, julgadas “serviço de desocupado”.

Mas o Véio, um sertanejo, antes de tudo um forte, não desistia. Integrado a natureza, passava dias vendo um joão-de-barro construir seu ninho e o pica-pau esculpindo a madeira. Ainda jovem, ajudou muitas pessoas, mas só as humildes e as desprovidas de recursos, a pagar promessas ao Padre Cícero com suas peças. Dizia que se não fosse artista seria um palhaço para ver todo mundo sorrir. E assim, continuou sua arte e a divulgá-la numa trajetória muito difícil e solitária, indo para exposições até de caminhão, seja no Recife, Salvador, São Paulo ou Rio de Janeiro, sempre representando Sergipe.

Hoje, Véio é um dos nomes mais consagrados da arte brasileira e do cenário artístico internacional, tendo participado de importantes exposições no Brasil e no mundo. Suas obras fazem parte do acervo de muitas galerias, museus e coleções particulares. Considerado por alguns um artista popular, por outros como contemporâneo, um artista moderno ou conceitual, a verdade é que o Véio é hoje um artista inclassificável tamanho é o seu grau de inovação. No mundo da arte, considera-se que as obras do Véio só serão entendidas daqui a 100 anos. A sua genialidade apresentou ao mundo formas visualmente inusitadas, a contenção do gesto e cores impactantes, o que fazem da sua produção um questionamento sobre a própria noção dela no espaço da arte. Suas esculturas deitadas pedem socorro; em pé, querem abraçar.

Tradição, dramas humanos, retrato do povo nordestino, imaginário que nos confunde, cenas do cotidiano, provérbios, crenças, estórias sagradas, o mundo profano, a política, a relação com o ser humano, a natureza e seu universo, fazem do Véio um artista genuíno, único. Véio é a infinita plasticidade dos objetos coincidente com a infinita plasticidade de seus olhos e mãos, como diriam os estudiosos da sua obra. Estrela da arte contemporânea internacional, o sergipano foi reverenciado em Milão juntamente com as obras de design de Oscar Niemeyer. Consagrado pela crítica, foi dito “Veio é intuitivo e joga luz para as sutilezas das cores primárias e vivas que valorizam as formas orgânicas. Niemeyer é erudito e aparece como um representante diametralmente oposto: é formalista, controlador e, entre as peças de design escolhidas, predomina a ausência de cor. “Ambos são puristas. Veio é mais quente e Niemeyer é mais frio”.

Véio sabe como ninguém interpretar a realidade do seu povo. Palhaços, penitentes, cães do inferno, seja em grandes dimensões ou miniaturas, essas obras fazem do Véio a representação máxima do sertão brasileiro um reflexo do seu espírito gráfico e multicolorido. Cada peça é uma história e, dessa forma, Véio torna-se uma fábrica criativa maravilhosa.

Suas obras hoje estão na Pinacoteca do Estado de São Paulo, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no Museu de Arte do Rio, no Museu da Gente Sergipana, no Memorial de Sergipe, entre tantos outros. Ele participou de exposições nacionais e internacionais, a exemplo do Instituto Tomie Ohtake, na Casa dos contos, da Bienal de Veneza, na Itália, onde exibiu mais de 100 de suas criações na Abadia de São Gregório, na Fundação Cartier, em Paris, na série de eventos mundiais promovidas pela Becoming Marni, na Art Basel Miami, entre tantas outras, que o fizeram receber o Prêmio Itaú cultural 30 anos com uma exposição formada por mais de 270 peças no mais importante espaço de São Paulo.

Insatisfeito, Véio criou, entre Glória e Feira Nova, o Museu do Sertão, reunindo um acervo de mais de 10 mil peças que contam os modos de vida e produção do sertanejo preservando a cultura popular da região. Da alcunha que carrega desde cedo, Véio diz sentir a obrigação de preservar a memória dos antigos e do povo sergipano. Teve um trabalho enorme para procurar cada antiguidade para preservar a história das comunidades primitivas em homenagem a elas. Sempre curioso em saber: Como foi que começou? Quem? Por que chegaram? Quais foram as razões de construírem no sertão? E foi em busca dessas informações que Véio se fez nas ruas jegue morto, gato preto, galo assanhado, rua de cima, beco da companhia e rua nova nos tempos antigos de Glória. Certa vez quando entrevistado na Bienal de Veneza foi perguntado: “– O senhor achou Veneza uma cidade linda?”. O artista sergipano respondeu: “– Lindo é o Sertão!”.

Veio é um artista que traz em sua arte a realidade crua do sertão e do sertanejo. Como ser humano, é pessoa simples, de alma grande como sua obra. Cidadão crítico do que o cerca, às vezes ácido e amargo, é um defensor da memória do povo sertanejo. Ao mesmo tempo que é arraigado ao seu lugar, também é um cosmopolita.

Em um momento em que o mercado “fala mais alto”, encontrar um artista tão apegado ao que produz é, no mínimo, surpreendente. Mas Véio sempre foi conhecido por essa característica, viver com menos e mais feliz. Para ele, cada obra tem um tempo de vida e de morte. Expostas muitas vezes ao relento, suas peças vão cumprindo sua sina e, quando chega a hora, morrem, se reintegrando à natureza. Tal valor, não “precificável”, estabelece uma relação tensa com o mercado, ávido por atender a demanda, que encontra em Véio outros princípios para além da lógica capitalista, fundamentados em sua luta pela dignificação do sertanejo e de sua rotina contemplativa, o que confere a sua obra uma qualidade indiscutível. Uma coisa é certa: uma pessoa que não valoriza a arte nunca terá uma obra vinda das mãos do Véio.

Não acredito em coincidências, acho que Véio é um escolhido. Escolhido como o Bispo do Rosário, também nascido em terras sergipanas e que dizia ter sido convocado por anjos emissários, em conta de sete e de aura azulada, e que falaram para ele empunhando espadas. Como diriam os versos de Antônio Nóbrega, é nessa hora que o verdadeiro artista se agarra a sua missão que parece loucura e vai lutar contra todos virando Dom Quixote. Privilégio sem fim para Sergipe, ter também nascido aqui o menino eternamente Véio. Escolhido para ser um colecionador de si e da memória do povo nordestino através das mais de 17.000 obras já criadas.

Véio é um ser político e uma memória viva, sua relação com a Universidade Federal de Sergipe não é de hoje, tendo em vista que um dos maiores estudiosos da obra do artista foi o Professor do Departamento de Ciências Sociais e antropólogo Fernando Lins de Carvalho, falecido em 2018. Segundo o professor, as obras do Véio mostram e criticam o lado religioso, político e social da humanidade, onde podemos encontrar sinais que talvez o próprio artista não perceba.

Em 2002, o Véio fez uma exposição no Museu de Arqueologia de Xingó-MAX, um resgate cultural, sob a curadoria do há pouco citado Fernando Lins, que o considerava o artista do movimento das ideias, pelo resgate social e histórico dos saberes e fazeres populares. Quem conhece as obras do Véio ingressa em um mundo novo, e foi por esse motivo que, em 2020, a UFS concedeu ao Véio o Grau de Mérito Universitário especial na categoria Mestre em Artes e Cultura Popular.

Por tudo isso, queria parabenizar a todos que fazem o Campus do Sertão da UFS por proporem de coração e abraçarem a causa de oferecer o seu primeiro título de Doutor Honoris Causa a um filho da terra, um filho da Boca da Mata, um filho de Nossa Sra. da Glória, e a todos que fazem o CONSU e CONEPE pela sua aprovação de forma unânime. Igualmente parabenizamos a gestão da UFS através do professor Valter Joviniano pelo fortalecimento das ações que tornam a UFS cada vez mais plural e o principal agente de transformação social do nosso Estado.

É importante destacar que a Universidade Federal de Sergipe concede o título de Doutor Honoris Causa, que do latim significa por causa da honra, como homenagem máxima conferida pelo Conselho Universitário a personalidades que se distinguiram, seja pelo saber, seja pela atuação em prol da Filosofia, das Ciências, da Técnica, das Artes e das Letras, seja pelo melhor entendimento entre os povos ou em defesa dos direitos humanos.

O Veio que cedo abandonou os bancos escolares, que sofreu ao ver as filhas, ainda crianças, serem alvos de chacotas na escola por não terem um pai advogado, médico ou professor, mas um artista, agora dá a elas orgulho ao se juntar a nomes como Chico Buarque, Ariano Suassuna, Milton Nascimento, Maria Thetis Nunes, Marilena Chauí, Ayres Britto, Marcelo Déda, Luiz Inácio Lula da Silva, Martinho da Vila, Severo Dacelino para ser reconhecido pela Universidade Federal de Sergipe como Doutor. Essa homenagem não é somente justa, ela é necessária, pois há um sólido sentimento de admiração e respeito diante da grandeza dos valores artísticos-sociais da sua obra. É a grandeza dessa obra que qualifica o artista sertanejo perante a sociedade e justifica esta homenagem. Viva o Véio! Viva a UFS! Viva os artistas sergipanos!

(Adaptação do discurso proferido em 05 de março de 2024, na cidade de Nossa Senhora da Glória, por ocasião da entrega do título de Doutor Honoris causa da Universidade Federal de Sergipe ao artista plástico Véio).

Originalmente publicado em: https://infonet.com.br/blogs/getempo/homenagem-ao-veio/ em 04/04/2024


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