Katty Cristina Lima Sá
Mestre em História Comparada pela UFRJ
Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS)
E-mail: katty@getempo.org
O que levaria seis homens distantes do padrão de beleza masculina a tornarem-se strippers? Esse questionamento foi o cerne da obra cinematográfica “Ou tudo ou nada” (The Full Monty), dirigida por Peter Cattaneo e lançada em 1997. O filme nos leva até a cidade inglesa de Sheffield, outrora uma potência na produção de aço, no momento do fechamento de suas indústrias, em meados dos anos de 1990, através das histórias de seis ex-operários. Frente à situação de desemprego e a um Estado que desmantelava seu sistema de seguridade social, o grupo liderado por Gaz (Robert Carlyle) realiza um striptease completo a fim de recuperar a renda perdida.
Mencionamos essa película porque ela trata de um processo que não é recente. Na verdade, ele tem sido analisado desde 1980: a desindustrialização. Visto como uma fase do desenvolvimento de “economias maduras”, esse processo implica no fechamento de indústrias manufatureiras, com substituição por formas de produção mais tecnológicas. Seu ônus para os trabalhadores nem sempre é debatido com profundidade.
A desindustrialização pode ser mais nociva aos países que não atingiram altos índices de modernização; ela está ligada a uma crise de desemprego e à interrupção do avanço tecnológico, sendo esse o caso do Brasil. A escolha por investir na exportação de commodities – isto é, em produtos de origem agropecuária ou de extrativismo mineral, com baixo grau de industrialização, produzido para venda no mercado exterior – em conjunto com o corte de verbas para ciência e tecnologia arrisca o crescimento em longo prazo e já mostra seus resultados. Forma-se uma massa de subempregados, com trabalhos demasiadamente flexíveis e instáveis, denominada por Guy Standing como “precariado”. Essa nova classe surge também por conta da “uberização” da sociedade.
Apesar do termo, a “uberização” não está ligada a uma única empresa, mas às novas relações de trabalho e à atuação do Estado na eliminação de direitos e controles legais contra a exploração. Realizam-se reformas trabalhistas que prometem “flexibilidade”, mas que delegam ao trabalhador todos os riscos e custos para o desempenho de suas funções, sem oferecer nenhum tipo de segurança para tanto.
Novamente, o cinema aparece como uma forma de vislumbrar a realidade que atinge pelo menos 3,9 milhões de brasileiros, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) 2019. Em “Você não estava aqui” (Sorry we missed you, 2020), o diretor Ken Loach apresenta a vida de Ricky Turner (Kris Hitchen), um ex-trabalhador britânico da construção civil que perdeu seu emprego durante a crise de 2008. Para sustentar sua família, Ricky se associa a uma empresa de entregas, e seu chefe, em suas primeiras falas, afirma: “você não é contratado […], você não trabalha para nós, mas conosco”, ou seja, o trabalhador não possui quaisquer vínculos empregatícios, ainda assim ele deve seguir as normas e metas rígidas da empresa.
Ao longo da narrativa, a imagem do trabalhador “uberizado” como “empresário” e “chefe de si mesmo” dilui-se na rotina exaustiva e na falta de amparo vivida por Ricky. Não há jornada de trabalho de oito horas, nem direito a folgas ou afastamento por doença. O “associado” deve estar sempre disponível; contudo, essa disponibilidade total não será remunerada, apenas o tempo em serviço efetivo.
Para finalizar, colocaremos lado a lado os enredos dos filmes citados. O que une a história de 1997 àquela lançada em 2020? Ambas mostram o desamparo dos trabalhadores e a abdicação do Estado em oferecer-lhes bem-estar. No caso do filme de Cattaneo, vivia-se o período do neoliberalismo pregado pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1925-2013) e pelo presidente dos EUA Ronald Reagan (1911-2004); já a obra de Loach fala do contexto no qual a vida é regida por aplicativos, com trabalhadores que atuam no estilo just-in-time. O Estado ignora a existência do “precariado” e, quando o observa, retira-lhe garantias historicamente adquiridas. A promessa diz que a flexibilização dos direitos abrirá novos postos, o que nem sempre acontece. Também não há aviso sobre a qualidade desses empregos.
Para saber mais:
Ou tudo ou nada. Direção: Peter Cattaneo. Roteiro: Simon Beaufoy. Local: EUA/Grã-Bretanha. Produção: 20th Century Studios, 1998; Duração 90 min. DVD.
Originalmente publicado em https://infonet.com.br/blogs/cinema-desindustrializacao-e-uberizacao-da-sociedade/ em 06/01/2022