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As cabeças de Lampião e Maria Bonita e o racismo brasileiro

Felipe Trindade de Souza
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFS)
Integrante do Laboratório de Estudos do Poder e da Política (LEPP/UFS)

Lampião e sua companheira Maria de Déa, a Maria Bonita. Fonte: Benjamin Abrahão Botto, 1936.

Recentemente, noticiou-se que após três anos e meio, o Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) reconstruiu os crânios de Lampião e Maria Bonita. As cabeças estavam secretamente em posse da família em Aracaju, desde 2002, quando funcionários do cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador, informaram que mudanças no local poderiam fazer os restos mortais se perderem. As cabeças têm trajetória singular, já que anteriormente, entre 1944 a 1969, ficaram expostas no museu do Instituto Médico Legal (IML) Nina Rodrigues, na capital baiana, e só após uma disputa judicial a família do Rei do cangaço conquistou o direito de sepultá-las.

O que as notícias não contam é que as cabeças de Lampião e Maria Bonita compõem importante episódios da história do racismo brasileiro. 

Lampião e Maria Bonita foram mortos em Angicos, Sergipe, em 28 de julho de 1938, juntamente com outros nove cangaceiros. O ataque ao esconderijo foi realizado pela volante alagoana do então tenente João Bezerra, que decidiu decapitar todos capturados, inclusive os ainda vivos. Após o massacre foi realizado um cortejo com as cabeças por cidades do interior alagoano até Maceió. Final trágico comum em nossa história, que registra diversos casos de decapitação e exposição pública de cabeças como troféu dos “vencedores” – Zumbi e Tiradentes são exemplos.

Na capital alagoana, as cabeças de Lampião e Maria Bonita passaram por exames frenológicos conduzidos pelo médico legista Lages Filho. O objetivo era constatar se os cangaceiros tinham traços que indicassem pré-disposições para a vida do crime – propósito conhecido por todos que acompanhavam as façanhas do cangaço na imprensa brasileira do período. Matéria publicada pela revista O cruzeiro, de 5 de março de 1932, por exemplo, retrata Lampião como um “bandido de berço” e que desde criança era dotado de grande “perversidade” por sofrer de “um mal atávico”.

Ainda em vida era comum ler descrições corporais minuciosas do Rei do cangaço e dos cangaceiros em jornais e revistas com um claro discurso racial. Era como se fosse preciso acrescentar ou corrigir o que as fotografias não captavam. O médico sergipano Ranulfo Prata, autor da biografia Lampião, de 1934, defendia que a criminalidade e a violência permaneciam ocultas nos portadores dos “estigmas” da raça até que algum episódio as trouxesse à tona. Em Lampião, a criminalidade se manifestou após o primeiro conflito com o seu vizinho, os Saturninos.

Na obra, Prata elabora seus argumentos através de uma extensa descrição corporal dos cangaceiros. Em Lampião, cada traço físico corresponde a um aspecto moral. Já em Zé Baiano, o médico afirma que o cangaceiro era, talvez, o mais violento do bando de Lampião por conta da sua feiura. Características, como “cabeça disforme, grande nariz […] [e] boca rasgada de sapo”, eram sinais corporais manifestos de sua delinquência. Assim como outros autores do período, o médico sergipano defendia que a miscigenação era a causa principal do desvio e da criminalidade. 

Como aponta Lilia Schwarcz, no excelente O espetáculo das raças, os representantes dessas ideias dispunham de várias teorias e metodologias para justificar seu racismo. A frenologia e a antropometria entendiam que a capacidade humana estava ligada ao tamanho e a proporção do cérebro dos diferentes povos. A craniologia técnica, por sua vez, media o índice cefálico e classificava o cérebro humano. Já a antropologia criminal do médico italiano Cesare Lombroso considerava os métodos já citados, além de uma tabela taxonômica dos traços faciais e corporais do “homem criminoso” e dos elementos psíquicos e sociológicos para suas conclusões.

Foi nesse contexto que as cabeças de Lampião e Maria Bonita se tornaram peças de museu e ficaram expostas em Salvador por mais de vinte anos. Por isso, é fundamental refletir no futuro das cabeças agora reconstruídas para não se reproduzir um passado racista. É de conhecimento público que a família do Rei do cangaço se mobiliza para implantar um museu em Aracaju com acervo pessoal. Com isso, em caso de nova exposição pública dos crânios tudo isso precisa ser contextualizado ao público. Ou pode-se, enfim, dar descanso eterno as cabeças.

Outros espaços com peças semelhantes decidiram proibir o acesso do público ao acervo. Um exemplo é o Museu Anatômico da Universidade de Edimburgo, que possuí a famosa “Sala dos Crânios” com centenas de exemplares. A coleção tem origem diversa, com itens doados, retirados de comunidades nativas durante expedições militares e coloniais, ou obtidos por apoiadores da frenologia. Atualmente, a universidade afirma que repatriou mais de cem crânios para as comunidades de origem, reconhecendo seu papel na propagação e perpetuação de teorias racistas.

Originalmente publicado em: https://infonet.com.br/blogs/getempo/as-cabecas-de-lampiao-e-maria-bonita-e-o-racismo-brasileiro em 23/10/2025


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