Geraldo Freire de Lima
Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (PPGF/ UFS)
Professor de Filosofia pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN)
Psicanalista pelo Instituto Freudiano de Psicanálise-Núcleo SE (IFP-SE)
E-mail: geraldotrieb@gmail.com.br
Quem já viveu um pouco mais de três décadas é capaz de perceber, por si só, mesmo que não seja ilustrado ao ponto de formular um raciocínio muito preciso, que a história se faz de progressos, mas sobretudo de repetições. Todos os avanços históricos carregam um quantum de relatividade ou de obscuridade, só reconhecíveis e assimiláveis por algumas gerações adiante, todavia as reentrâncias históricas são facilmente apropriadas, reduzidas à natureza ou à tradição, raramente são apreendidas como retrocesso civilizacional.
A grande novidade dos nossos tempos é que, pelos fatores desconhecimento, descaso e negação da história, em geral orgulhosamente declarados, dificilmente muitas pessoas são capazes de discernir, razoavelmente, o que de fato representa uma melhoria ou regressão histórica, ou podem, como efeito do engodo do individualismo liberal, simplesmente tomar algumas conquistas da sua vida privada por um aperfeiçoamento da cultura em geral. A sensação de bem-estar narcísico costuma ser confundida com uma evolução do tempo presente. Tomam o seu umbigo pelo umbigo do mundo.
Pois bem, como consequência, não é difícil nos depararmos atualmente com indivíduos, de todas as idades, que realmente acreditam que as novas tecnologias, em especial as mídias digitais, representam uma grande conquista da nossa época. Ofuscados por um excesso de cotidiano, ou, como denominou o pensador alemão Theodor Adorno (1903-1969), uma “idolatria daquilo que existe”, tornaram-se impossibilitados de reconhecer os verdadeiros avanços científicos e culturais de nossa época, ou mesmo ineptos para elaborar uma crítica sobre aqueles. Uma das grandes contradições dos nossos tempos é que muitas barreiras de acesso ao conhecimento e às informações socialmente úteis foram de fato superadas, porém ao custo da decadência do desejo de conhecer, que no momento se encontra obliterado pelas banalidades da vida cotidiana.
Como é comum às ideologias pós-industriais falsear a forma pelo conteúdo, podemos afirmar que as únicas diferenças entre as mídias atuais e as antigas são quanto a velocidade e a quantidade das “informações” – hoje reduzidas ao termo sinóptico e sínico de “conteúdos” –, pouco foi alterado quanto aos seus teores e sua estética. O carro Modelo Ford A, que atingia no máximo 30 Km/h, foi convertido em drone, mas a história ainda pretende ser motorizada. Seus materiais, em essência, não se diferenciam em nada do que a TV reproduz há mais de 60 anos, apenas hoje não precisamos mais esperar obedientemente sentados o desenrolar de um quadro de programação imposto por um canal de TV, agora possuímos o direito democrático de repercutir os mesmos “conteúdos”, ad infinitum, a partir de nós mesmos: eis a grande revolução. Entretanto, a bestialidade humana, em sua forma mercadoria, continua aí intacta.
Presentemente, as implicações da indústria cultural e do mundo administrado se tornaram tão efetivas que dificultou-se o seu reconhecimento, pois já foram incorporadas à normalidade habitual tal como uma natureza. Os campos da existência, da cultura, da política e da economia foram integralizados e camuflados sob a aparência de uma realidade coesa. O capitalismo atual, a partir de mudanças estruturais em suas ideologias, não faz mais questão de esconder seu original propósito: promover uma síntese universal. Hoje encontramos poucos limites entre a privacidade e a publicidade, entre o trabalho e o descanso, entre a necessidade e o fetiche, e qualquer coisa, até mesmo o sofrimento humano, pode ser convertido em mercadoria. Se antes os âmbitos teóricos denunciavam a fragmentação da realidade pelo sistema de acumulação do capital, recentemente lidamos com as consequências nefastas da tentativa de uma síntese virtualizada da imagem do mundo. Capitalismo extremo significa desumanização extrema.
Como no fundo lidamos, ainda, com um sistema de circulação de mercadorias, mas principalmente de significações humanas, não estamos livres de suas limitações simbólicas. O capitalismo não distingue produção de reprodução, assim, todas elas uma hora tendem a se repetir, nem sempre da mesma maneira, não obstante retrocedem. Sua figuração corriqueira como um canto de sereia está mais para uma ladainha de papagaio num corpo de camaleão. Como um sistema que tem por engenho a sedução por via do encantamento, está sempre tocando um ritmo diferente, no entanto sua melodia é a mesma dos salões burgueses do século XVIII. Vale lembrar ainda que as sereias eram filhas da musa Melpômene, que entoava uma harmonia alegre, contudo sua face era representada por uma máscara (persona) angustiada: a tragédia.
Originalmente publicado em: https://infonet.com.br/blogs/getempo/capitalismo-canto-de-sereia-ou-ladainha-de-papagaio/ em 14/11/2024
Postagens Relacionadas
Capitalismo: canto de sereia ou ladainha de papagaio?
Geraldo Freire de Lima Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Univer…
O senhor dos anéis em Aracaju
Maria Luiza Pérola Dantas Barros Doutoranda em História Comparada (PPGHC/UFRJ)Integrante do Grupo de…
Medo e suspeita na década de 1940
Maria Luiza Pérola Dantas Barros Doutoranda em História Comparada (PPGHC/UFRJ)Integrante do Grupo de…