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Entulhos e reflexões

Ailton Silva dos Santos
Mestre em História (PROHIS/UFS)
Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq)
E-mail: ailton@getempo.org

Fonte: https://www.fictionbrands.org/livros/tyrell-corp/

Em Blade Runner, filme de ficção científica de Ridley Scott (1937) baseado no livro “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” de Philip K. Dick (1928 – 1982), encontramos nas entrelinhas o conceito de bagulhificação, também conhecido no inglês como kipple. Esse termo busca descrever o acúmulo de objetos sem valor ou utilidade, entulhos ou bagulho no bom português, que tomam conta dos espaços e representam a degradação gradual da sociedade.

É uma sombra, caracterizado pelo acúmulo de detritos a nossa volta. Se pensarmos que o universo abomina o vazio, podemos compreender que tudo tende ao preenchimento. Contudo, na falta de algo que tenha significado, este espaço acaba sendo alimentado em sua maioria por lixo, caso não tenhamos atenção para com a manutenção. Já observou que, uma casa abandonada ou uma rua deserta, tente a acumular sujeira que vem de todo lugar e lugar nenhum? Entrementes, assim também tende a funcionar nossa mente que, sem controle ou direcionamento, reproduz pensamentos nocivos ou até destrutivos e depressivos. Entulho emocional.

Na película supracitada observamos prédios colossais que bloqueiam a luz, ruas sujas que transbordam de multidões de pessoas igualmente descartáveis como os objetos que se amontoam ao redor. No apartamento empoeirado do personagem J.F. Sebastian, a bagulhificação se manifesta como símbolo da solidão e do vazio existencial que ele exprime. Mais do que um mero cenário, tal ideia se transforma em metáfora para a desumanização. A proliferação de objetos sem significado reflete a perda da essência humana, enquanto a obsessão pelo consumo e simulacros alienam as pessoas da realidade.

No livro “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” (1968), que deu origem ao filme, o conceito toma forma mais estabelecida a partir da teoria do personagem J.R. Isidore, que foi usado como base para J.F. Sebastian. Em linhas gerais ele a descreve, sem dar nome a bagulhificação, como um processo inevitável que leva à extinção da humanidade. Deckard, o protagonista da obra, por outro lado, luta contra essa visão pessimista e busca esperança na conexão entre os seres vivos e uma possível reconexão com o mundo.

Ambas as produções nos convidam a refletir sobre o consumismo desenfreado, a alienação e a perda de valor. É um alerta para os perigos da degradação ambiental e um chamado à busca por um futuro mais humano. Em paralelo, a bagulhificação é um conceito complexo e multifacetado que nos instiga a pensar sobre a natureza desta tal humanidade, que propaga o consumismo e a degradação do meio social, enquanto impulsiona a alienação e a perda de si mesmo.

Originalmente publicado em: https://infonet.com.br/blogs/getempo/entulhos-e-reflexoes/ em 29/08/2024


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