Adriana Mendonça Cunha
Doutoranda pelo PPGHCS/COC/Fiocruz
Integrante do GET/UFS/CNPq
E-mail: adriana@getempo.org
Durante muito tempo, a História foi marcada pelos registros das guerras e dos acontecimentos políticos. O cotidiano, especialmente das mulheres, dos escravizados, dos indígenas e de tantos outros grupos ocuparam papel secundário nos livros e nos estudos dos historiadores. A jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch, em seu livro A guerra não tem rosto de mulher, cujo objetivo é dar voz as mulheres soviéticas que lutaram na Segunda Guerra Mundial, já na página 12, nos traz a seguinte afirmação: “Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma ‘voz masculina’. Somos todos prisioneiros de representações e sensações ‘masculinas’ da guerra. Das palavras ‘masculinas’. Já as mulheres estão caladas.” Embora não seja uma obra historiográfica, ela nos provoca inúmeras reflexões: onde estavam as mulheres durante a Segunda Guerra? Por que elas não estão nos livros de história? Como elas viveram o conflito? O que elas nos podem dizer?
A resposta é incômoda, mas muito simples: a guerra sempre foi pensada pela ótica masculina. Quase ninguém perguntou como as mulheres viveram a guerra, o que fizeram, como sobreviveram. Em muitos casos, elas foram silenciadas, obrigadas a “esquecer” o passado e o sofrimento para seguir em frente, confortando os homens que voltaram do front. Mulheres como as franco-atiradoras soviéticas e as chamadas “mulheres de conforto” foram, durante muito tempo, deixadas para trás pela (a) história (s) da Segunda Guerra.
O passado dessas mulheres que viveram e lutaram (de inúmeras formas) a guerra foi considerado uma vergonha e, portanto, deveria ser esquecido. Não por acaso, apenas em 1991, a senhora Kim Hak-Sun criou coragem para contar ao mundo os horrores que viveu nas mãos dos soldados japoneses enquanto foi “mulher de conforto”. Sua coragem inspirou outras mulheres coreanas a revelar o cotidiano de milhares de jovens entre 12 e 14 anos que foram raptadas, enganadas com falsas promessas de emprego ou mesmo coagidas a viver em bordeis, onde eram estupradas, espancadas e assassinadas por soldados japoneses.
Essa prática se tornou comum a partir dos anos 1930, especialmente após a ocupação da China, quando soldados japoneses estupraram e assassinaram entre 20 mil e 80 mil mulheres na capital Nanjing. Naquele período, a Coreia era ocupada pelo Japão (1910-1945), que passou a recrutar jovens coreanas para servir como “mulheres de conforto” em bordeis militares. Estima-se que entre 80 mil e 200 mil mulheres (coreanas, chinesas, filipinas) foram brutalmente vítimas dos soldados japoneses. Dessas, cerca de 80% eram coreanas, visto aquele país estar sob o domínio do império nipônico.
A maioria dessas mulheres não sobreviveu à guerra e, após o fim da ocupação, em 1945, as sobreviventes foram silenciadas, obrigadas a retomar a “normalidade” sem que o tema fosse discutido pelo governo coreano. Além do esforço japonês para queimar registros, a guerra entre as Coreias e o moralismo patriarcal da sociedade coreana ajudam a explicar a falta de atenção para a questão. (OKAMOTO, 2013).
Foram os movimentos feministas coreanos, o esforço de historiadores, jornalistas e, principalmente, a coragem das sobreviventes que colocaram o tema em debate nos anos 1990. A partir do relato de Kim Hak-Sun, muitas mulheres no mundo inteiro se apresentaram e relataram o que viveram nas mãos dos soldados japoneses. Organizações como a Jeongsindae reivindicaram o reconhecimento desses crimes e exigiram reparação histórica. Manifestações em frente à embaixada japonesa na Coreia, a publicação de artigos e a cobertura da impressa forçaram o governo japonês a protocolar, em 2015, um pedido formal de desculpas.
No entanto, o assunto permanece sendo um ponto de tensão entre a Coreia do Sul e o Japão. Este último solicitou a retirada de estátua de uma “mulher de conforto” colocada em frente à embaixada japonesa em Busan. Isso revela que, mesmo no século XXI, a vida das mulheres na guerra continua sendo um tema que muitos desejam esquecer. Por isso, cabe a nós lembrar!
Para saber mais:
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. Tradução: Cecília Rosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
BRACHT, Mary Lynn. Herdeiras do mar. Tradução: Julia de Souza. São Paulo: Paralela, 2020.
OKAMOTO, Julia Yuri. As “mulheres de conforto” da Guerra do Pacífico. RICRI, Vol. 1, nº 1, 2013, pp.91-108.
O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Originalmente publicado em: https://infonet.com.br/blogs/getempo/o-imperialismo-japones-e-as-mulheres-de-conforto-durante-a-ii-guerra/ em 28/09/2023