Ayrton Matheus da Silva Nascimento
Licenciado em História pela UFAL, Campus do Sertão e mestrando pelo PROHIS/UFS.
Refletir sobre o silêncio e o seu funcionamento, do não dizer, mas que também é constitutivo da significação, encontra-se nos (des)limites do terreno insólito e de fronteira que é a linguagem. E esse é o objetivo proposto neste texto. Afinal de contas, o que nos reserva a instância do não dito? Será que nós, enquanto sujeitos políticos, não deveríamos dar a ele a mesma atenção que damos ao que está dito e em “evidência”? São essas perguntas que, sinteticamente, buscaremos responder neste texto.
Como aprendemos desde muito cedo, não devemos dizer nada que possa nos condenar. Temos, inclusive, do ponto de vista legal, o direito de permanecer em silêncio. Entendemos, contudo, que é a partir da relação do dito com o silêncio que os sentidos emergem e tomam forma. Ingenuamente, no nosso trato com a linguagem, há casos em que o silêncio parece não significar, podendo falsear e se passar por uma não opinião ou neutralidade, um não posicionamento. Portanto, versar sobre esses espaços/lugares de silêncio, em nossa sociedade, se torna imprescindível para compreendermos a nossa realidade.
Do nosso ponto de vista, com base nos contributos do filósofo francês Michel Pêcheux e da linguista brasileira Eni Orlandi, a importância de pensar a relação entre o dito e o silêncio reside no fato de que os sentidos não se encontram fixos em algum lugar ou espaço, mas que são produzidos a partir de determinadas relações (históricas, sociais, ideológicas, etc.) que os formulam. O silêncio, conforme Orlandi o aborda em seus trabalhos, cria na palavra um espaço entre a presença e a ausência, e é esse espaço que permite com que os sentidos se desloquem na história e possam se tornar sempre outros.
Para Orlandi, o silêncio é um lugar de recuo necessário para que o sentido seja possível. De modo que todo dizer possui uma relação direta e necessária com o não dizer, pois neste caso, o silêncio evidencia o caráter de incompletude da linguagem, como um espaço aberto a múltiplos sentidos. Dessa forma, o silêncio atravessa e habita as palavras. Em outros termos, o silêncio, como lemos, é fundante.
Mas e o não dizer? Será que ele, por não ser “pronunciado”, nos exime de nos posicionarmos? Não seria o não dizer já um posicionamento e um sentido, da mesma forma que aquilo que dizemos? A essas questões respondemos que sim, pois o não dizer emerge da relação direta com silêncio.
Orlandi define o silêncio da seguinte forma: teríamos o silêncio enquanto fundador, imprescindível e necessário para os processos de significação, na linguagem. Já a política do silêncio que rege e explicita na prática o seu funcionamento é simultaneamente atravessada pelo silêncio constitutivo, em que, na seleção das palavras para se dizer algo, algo sempre será silenciado. E, por fim, o silêncio local, que seriam espécies de censuras conjunturais, pois aos sujeitos não é dado o direito de dizer tudo.
Pensemos nessa formulação a partir da figura de qualquer sujeito que se silencia, e que se permite não prestar contas, falar ou esclarecer seu ponto de vista sobre determinada questão, a fim de, posteriormente, alegar ausência de posição. Não se trataria de um silêncio fundador, mas de um silêncio como uma prática, dentro do jogo complexo da política, atravessado e constituído pelo processo, já designado, de significação. E isso já seria um posicionamento, uma distinção que produz determinados efeitos de sentidos. O silêncio deixa de ser uma ausência de posicionamento/opinião, mas algo conectado aos processos históricos.
O status do dizer, na história, em alguns espaços como nos júris, tem em si o poder de inocentar ou condenar, de, “explicitamente”, nos envolver nas tramas sociais. Trata-se, nesse sentido, de um jogo e um espaço, que funciona e opera de maneira social, histórica, política e ideológica, e que possui leis e regras próprias de funcionamento. O dito, assim como o silêncio, declara, nos posiciona.
Portanto, no silêncio reside o quadro histórico, político e social. O silêncio, para além do não dito, é todo esse complexo, e também constitutivo da/na significação. O não dito é silêncio, mas o silêncio não se resume a ele, pois se encontra além, conectando a história a essa equação. Se quisermos compreender e captar as raízes e os sintomas políticos e sociais, bem como o funcionamento que o silêncio “esconde”, é necessário buscar aprendê-lo e confrontá-lo com as evidências do dito e do pronunciado.
Quanto às questões mobilizadas inicialmente, pensamos que a instância do não dito é, também, um produto da história, como resultado fundador e/ou cohttps://infonet.com.br/blogs/o-lugar-do-silencio/njuntural. Para que algo fosse dito, algo precisava ser silenciado, pois não é possível dizer tudo ao mesmo tempo. Assim, o silêncio vela e desvela processos da/na história, é a política que rege o silêncio. A conjuntura, o contexto e as condições de produção e enunciação, de modo que nós, cientistas e pensadores, devemos, nos nossos gestos de leitura e análise, conceder-lhe o seu devido espaço, e “ouvi-lo”, o silêncio, com cuidado quando ele parecer não falar ou não significar.
Originalmente publicado em: https://infonet.com.br/blogs/o-lugar-do-silencio/ em 30/12/21